Módulo 9

Essa crença nasce da confusão entre hierarquia e liderança. São coisas diferentes. Aliás, só há hierarquia quando há déficit de liderança.
Toda hierarquia se erige pela materialização e repetição de passado. Na tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-se pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-humana (divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as linhas sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros carregavam o múnus originário, que podia ser delegado, em graus subordinados, a quem a eles se submetesse). Era um objeto (como se os superiores possuíssem um estoque de “células-tronco” para construir o “corpo” hierárquico). A própria palavra hierarquia (hieros + arché) designava esse poder sagrado (etimologicamente hierarquia é uma ordem sacerdotal, um poder da intermediação).
Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito que lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua vocação administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança.
Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo de centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter sido escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de conexões em que o chefe ou líder se inseria.
A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a “liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para sempre, em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o contrário da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre multiliderança (possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em determinadas circunstâncias fortuitas).
A liderança na rede flui como um rio. Os líderes que se sucedem, aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água sempre a correr” (para usar a bela imagem de Norbert Wiener). A monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para a chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso.
Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui-se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi introduzida a escassez de caminhos.
Não há nenhuma problema com a liderança. Mas há problema, sim, com a falta de lideranças. Se não aparecem continuamente novos líderes é sinal de que algo está impedindo essa emergência.
Mas por que as pessoas continuam achando que em rede ninguém pode liderar? Não seria preferível dizer que em rede todos podem liderar (e não apenas alguns)?