Módulo 13

Não se sabe quem disse isso, mas quase todo mundo repete. Este é um daqueles (falsos) axiomas verossimilhantes (que parecem verdades evidentes por si mesmas) que em geral são aplicados a todas as formas de convivência social. É claro que organizações hierárquicas precisam de hierarquia! Mas a questão aqui é outra: a questão é saber se as organizações precisam ser hierárquicas.
A hipótese de que foi a escassez (natural, de recursos) que gerou a hierarquia e que, assim, a hierarquia tenha brotado espontaneamente do caos, foi tão sedutora para alguns quanto enganosa para todos. Até hoje ainda há os que se põem a promover um deslizamento (para o natural) do conceito (social) de hierarquia, com base na suposta evidência de que ela é encontrada em toda parte – do mundo físico (e. g., sistemas termodinâmicos) ao mundo biológico (e. g., sistemas vivos aninhados) – e que isso seria uma prova de que a hierarquia é natural e, destarte, também naturalmente se manifestaria no mundo social.
Mas a escassez que gera hierarquia é introduzida artificialmente, sempre pela supressão de caminhos. Não há uma escassez em si. O conceito é relacional: escassez, quando há, é sempre em relação a algo ou alguém que carece de determinados recursos em determinado ambiente. Ao fluir com o curso, ao se deixar levar pela “vida nômade das coisas”, tal escassez não se configura. A escassez só surge com o represamento do rio.
Nos sistemas naturais não pode haver o conceito de escassez porque não há um indivíduo que reclame uma necessidade contra o ecossistema na medida em que cada parte do ecossistema se insere na lógica da abundância que regula o sistema. Nos sistemas sociais (ou antissociais, seria melhor dizer), a escassez é introduzida pelo modo de regulação de conflitos. Toda vez que se regula conflitos de modo autocrático, gera-se escassez que permite a ereção de estruturas hierárquicas. E toda vez que se erige um sistema hierárquico pela eliminação de caminhos, geram-se modos de regulação não-pluriárquicos que se mantêm pela reprodução da escassez.
Também é muito comum a confusão entre hierarquização (que é uma centralização) e clusterização (ou aglomeramento provocado pela dinâmica de uma rede). Isso dificulta a compreensão do fenômeno do poder nas redes sociais. Desse ponto de vista, aliás, seria o exato contrário: o poder não surge da clusterização e sim – juntamente com a exclusão de nodos e a obstrução de fluxos – do desatalhamento (supressão dos atalhos) entre clusters (aglomerados).
O poder (como poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua vontade, como, ao fim e ao cabo, se manifesta qualquer poder) é uma medida de não-rede (em termos de rede distribuída); quer dizer, é uma medida direta do grau de centralização (ou uma medida inversa do grau de distribuição) de uma rede. Ele ocorre (ou sobrevém) não quando os nodos se aglomeram em função da sua interação e sim, ao contrário, quando impedimos que tal aglomeramento se dê livremente (em virtude da dinâmica da interação), mas colocamos obstáculos, construímos cancelas ou selecionamos caminhos por onde ela (a interação) deve passar: sejam muros, cercas, paredes, escadas, portas e fechaduras, ou firewalls. Todo poder nasce de um impedimento imposto à livre fluição. Todo poder é uma introdução artificial (uma fabricação) de escassez de caminhos. Todo poder é uma tentativa de evitar a abundância de caminhos. Todo poder – necessariamente hierárquico – é uma reação à distribuição.
A tendência nas redes sociais mais distribuídas do que centralizadas é que os clusters não fiquem isolados, mas interligados, interagindo entre si. Simplesmente porque eles acabarão, mais cedo ou mais tarde, fazendo isso – desde que não se o impeça. Fundamentalmente, porque eles podem fazer isso!
A clusterização em redes sociais tende a aumentar à medida que essas redes vão aumentando seu grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de interatividade). Esse é um indicador da transição para a sociedade em rede, na qual vão se alterando as configurações congeladas pelas fortíssimas centralizações impostas pelo sistema de equilíbrio competitivo entre menos de duas centenas de Estados-nações em um mundo de mais de 7 bilhões de habitantes. Em termos políticos (ou geopolíticos), a clusterização sócio-territorial que conforma e dá identidade a miríades de novas comunidades (de vizinhança, de aprendizagem, de projeto e de prática – clusters de convivência enfim) é uma expressão do localismo cosmopolita que floresce à medida em que a globalização do local encontra a localização do global. Isso está na origem dos Highly Connected Words que emergem nesta época em que vivemos.
Mas por que não percebemos isso? Por que continuamos achando que não se pode organizar nada sem um mínimo de hierarquia?